Galeria Manuel Márquez Ourense España
Superficies cremosas, orografías abstractas
La pintura no figurativa debe exhalar veracidad, y cimentarse en un andamiaje sólido, proceso sintético hasta reducir la materia a sus partículas más elementales. Los trabajos de João abrazan la mesura, en un mapa sinóptico a caballo entre la plenitud, la austeridad y el volumen lírico. No se percibe una abstracción geométrica stricto sensu, pero sí orden, equilibrio y mimada pulcritud en su epidermis.
Mientras pasea por los bulevares de la creación, João Alexandre se aviene con una técnica milenaria: la encáustica. A diferencia del óleo, en el que el aglutinante de los pigmentos suele ser el aceite de linaza o la esencia de trementina, en la encáustica se aplica cera de abejas refinada, proporcionando efectos de apreciable intensidad. Resultan así obras táctiles, de plasticidad orográfica y destacadamente contemplativas, detalle heredado de la color field painting de posguerra. Sus contornos netos, bruñidos, por el contrario, la vinculan con la corriente hard edge. Conjuntamente, el collage y el informalismo proporcionan matices a su obra, reposando sobre madera, papel o papiro.
Sus trazos son poderosamente vigorosos, de profundidad abismal, materia sin materia, caligrafía desnuda y envolvente como la música de las esferas. ¿No aspira en definitiva el arte abstracto a convertirse en reino soberano, independiente? La pintura es un templo, y cada surco que Alexandre excava una invocación al color y a la forma, embebidos de sentimiento. Superficies impermeables, negros tupidos, magentas carnales, aguamarinas escanciados, y blancos delicados como seda de Kashgar, galantean con la retina. Encáustica, importada del griego, significa literalmente grabar a fuego. Bien lo sabían en la inmemorial Solunto, y asimismo João, impecable legatario de técnicas perennes.
Manuel Márquez Crespo
Historiador del Arte
Centro das Artes do Espectáculo Sever do Vouga
Modus operandi
Como eu já disse num outro texto sobre João Alexandre, falar dele não é fácil, porque não é fácil falar de um pintor que é, ao mesmo tempo, amigo, filósofo e criador.
O João resolveu dar a esta sua exposição o título Modus Operandi, que é uma expressão latina utilizada para significar um modo de agir ou de operar, mantendo sempre, de uma maneira geral, procedimentos idênticos.
Na verdade, objectivo e positivo como é o João, não poderia escolher melhor título. É que toda a sua obra, desde que o conheço, mais do que em qualquer outro pintor, revela um permanente modus operandi do qual ele não mostra vontade de sair, a despeito de uma imaginação dinâmica e de uma inteligência sempre activas.
Isto não impede que a sua pintura seja de uma singular originalidade, elaborada numa espécie de redundância conceptual, materializada na esfera de uma filosofia palpável, que, pelo facto de ser palpável, não deixa de ser profunda.
Materializada dentro dessa filosofia palpável, a sua pintura parece adquirir, filosoficamente, um carácter quase imaterial, onde não se vislumbram gestos nem mãos. Há uma expressão que já utilizei, mas que me parece tão adequada à pintura do João Alexandre, que não resisto a relembrá-la: a sua pintura vai aparecendo como se o artista soprasse a camada de pó que a cobre, não se sabe se há séculos, há milénios ou há um tempo fora do tempo. Uma espécie de alma para lá da translucidez da estrutura corporal da tela.
O João sabe como ninguém que o sentimento artístico enriquece o sentido da humanização, ajuda o processo de reflexão, ilumina as emoções e os sentimentos, cria uma poderosa afinidade com a consciência, gera uma grande necessidade de identificação com a verdade, desenvolve o sentido da estética e da beleza. E o João também sabe que o sentimento artístico é indispensável para a compreensão da maravilhosa complexidade dos seres e do mundo. O sentimento artístico, a inteligência e a vontade contribuem para que o prazer estético decorra do triunfo sobre o humano, criando sentimentos novos que projectam o homem na ordem universal.
Por isso, a pintura de João Alexandre é um testemunho de que esse mesmo sentimento artístico nasce de um doloroso processo de aprendizagem e descoberta, através de um longo caminho de humildade e de verdade. E não tenho dúvidas de que João Alexandre é um artista feito de curiosidade e uma pessoa cuja grandeza se mede pela grandeza da sua humildade. Não é de somenos importância que o João, senhor de uma insaciável sede de cultura geral, social e científica, e de uma profunda sabedoria dentro da área da pintura, seja um pintor sem presunções e sem vaidades, um pintor profundamente sério dentro da fragilidade e da eterna marginalidade da arte.
Claro que cabe a cada ser humano a necessidade de aprender a sede de infinito e liberdade. Parecendo, falsamente, um conceito elitista, não pode ser a arte a descer ao homem, mas é, certamente, o homem que tem de subir à arte através de um processo cultural mais ou menos árduo e longo. Para tal ele tem de aprender que a arte não é um conjunto de partes mas um todo emaranhado de interacções profundas entre o Homem e a vida, entre o Homem e a estética, entre o Homem e o Universo. Daí a total ausência de ambiguidade na pintura do João. Ele sabe que a obra de arte não deve pretender mostrar nada em concreto, e que por mais figurativa que seja a obra de um artista, ela só é arte quando a sua profunda, intrínseca e mágica natureza lhe confere um delicado papel de estímulo que pode arrancar o homem à sua hibernação e levar a pessoa que a contempla a revelar-se a si própria e a conhecer-se melhor.
Decorrente do que disse atrás, creio que João Alexandre, na sua pureza e seriedade artísticas, e de uma forma provavelmente não totalmente consciente, se tenha deixado imbuir de um certo esoterismo, enigmático e impenetrável, com o qual foi esmerilando pacientemente essa pedra informe que ganha vida e sonho nas suas telas misteriosamente abstractas. Talvez advenha daí um certo medo, saudável medo, de trocar o modus operandi que, segundo julgo, ele pensa que ainda o não catapultou ao entendimento do todo, às altas esferas da nossa utopia em que tudo existe mas nada existe isolado.
Neste longo caminho do amadurecimento, tapetado de cardos e abrolhos, o João é das poucas pessoas que conheço, que, como homem e artista, tudo tem feito para não deixar a vida parar no tempo, nunca se esquivando ao relativo para pôr bem alto os olhos no absoluto.
Dr. Adão Cruz
Maio 2010
Galerie Art et Vision Genève Suisse
JOÃO ALEXANDRE - JOAQUÍN BALSA
PORTUGAL – ESPAGNE
REGARDS CROISÉS
Portugal: A la langue chantante, chuintante, comme les vagues océanes.
Espagne : A la langue âpre et rocailleuse comme les contreforts de Castille.
Les lieux inspirateurs des verbes et des dieux. Les lieux inspirateurs des artistes.
João Alexandre et ses cantiques des eaux.
Jaoquín Balsa : la morsure métallique sur l'étoffe des pigments.
Deux pays, deux œuvres emblématiques, deux regards croisés de deux artistes
contemporains.
Nés tous les deux au début des années soixante, a mi-chemin de leur parcours
créatif, ils ont passé leur enfance dans deux pays encore sous le joug d'un régime musclé. L'avènement des démocraties parlementaires a permis à ceux-.ci de
s'épanouir dans leurs deux pays respectifs, encouragés par de nouvelles
institutions. En résulte une saveur, une authenticité. Il y a donc des
artistes fidèles à la fonction sacrée et métaphysique de l'Art, sa
vocation première. Le reflet authentique du présent pour les archéologues du
futur. Mais aussi la sentinelle, l'éclaireuse inspirée de notre destin commun.
Deux artistes d'aujourd'hui, la quarantaine entamée, dans la force et la
jeunesse de leur art. Deux regards croisés, deux témoins privilégiés de
deux pays proches de la Suisse, plus proches encore de Genève, par les
nombreux membres de leurs deux communautés qui y ont fait souche.
João Alexandre est né à Sever de Vouga au Portugal, en 1960, mais c'est à
Sao. Paulo, au Brésil, qu'il acquière son métier, à la faculté des Beaux.-Arts.
Le grand large, les grands espaces, dès sa jeunesse. Enfant de l'océan,
comme ceux de son peuple, Joao est également un enfant de l'abstraction,
mais au-delà du paysagisme, au-.delà du lyrisme. Au cœur du cosmos, au cœur
de la création. A la source des eaux, créatrices de formes. D'où les
tentatives de certaines de ses œuvres. Essais liquides, en technique mixte sur
toile. Ou encore le cantique des eaux, le titre d'une autre exposition.
Emergent des océans cosmiques, où le liquide se mélange au ciel, aux
constellations. Chaos originel aux prises avec l'imaginaire. Magma
primordial, nostalgique du grand Tout. Ordre et désordre, ombres et lumières.
Vertiges des profondeurs, abysses inconnus. L'artiste avance, armé de
quelques pigments, de quelques élixirs alchimiques. Il fixe un moment
imaginaire et cosmique pour longtemps. Magie. Ors et noirceurs mêlées,
chaudrons brûlants de rouges éruptions. Plus loin,
la froideur astrale. Emerveillement du monde. Diversité, Beauté donnée.
Microcosme, macrocosme et la tentative de synthèse, démiurgique. L'œuvre
est née, de la réalité captée, intemporelle, solennelle.
Préoccupations plus conceptuelles dans ses dernières productions. Le titre :
ambiguïtés.
L'artiste y expérimente de nouveaux matériaux, le carbone naturel au noir
d'encre, les empâtements de ciment fusionné à l'acrylique. Il continue
sa quête, l'art comme élaboration mentale, indicible, mystique. Dans cette
construction humaine, chacun peut s'y reconnaître selon son propre vécu
culturel. Avec toutes les ambiguïtés, les interprétations multiples. Les
formes se solidifient, les techniques s'épurent. Nulle présence humaine, ou
technologique dans les œuvres de João Alexandre. L'artiste est au cœur de
la nature, au cœur de lui-même aussi, pate humaine fusionnée au cosmos et en
quête de sens. En résistance contre les mondialisations technologiques,
répétitrices du même, à l'infini, jusqu'à la nausée.
Joaquín Balsa est né à Ourense, en Galice, Espagne, en 1960. Liberté du
geste, originalité de la pensée, c'est le type même de l'artiste en
recherche permanente. Voyage au pays de la mémoire, découverte de soi, de ses
pulsions inconscientes, de ses abîmes, mais aussi de ses joies. Hymne à la
création, à la crête du mysticisme. Joaquín interpelle, se cherche,
expérimente de nouvelles techniques, de nouveaux arts de vivre. Avec les
autres aussi, puisqu'il réalise des performances publiques dans lesquelles
il intègre divers acteurs : enfants, fonctionnaires, travailleurs sociaux. De ses gestes libres naissent des harmonies frémissantes, des formes puisées dans un vieux fond secret. Les souvenirs de vies antérieures, une archéologie privilégiée qui fait sens.
Paysages cosmiques, effervescences, et l'être se dévoile, signe des autoportraits
somptueux. Quand il zèbre ses peintures sur chape galvanisée à la scie électrique, il
expérimente la vitesse, la morsure sur la soierie des couleurs.
Des harmonies aléatoires se dévoilent alors, découvrant les mondes
intérieurs, visions, signes, symboles, jeux. L'essentiel : être à l'écoute de soi, de ses pulsions, de ses sentiments. Emergence de formes, de rythmes, de couleurs.
Emerveillement du monde dévoilé comme devant l'amour.
Tableau de soi, à l'infini, révélateur. Des peurs, du chaos à venir, mais aussi des harmonies toujours possibles, lorsque l'humain chuchote, les chemins de traverse, les
chemins de liberté, les retrouvailles, la fusion amoureuse.
L'art de Joaquín Balsa s'exerce également en trois dimensions. Sculptures
verticales, totems colorés, disent son monde. Choc du bois et du métal.
Tendre monde intime contre agression du monde. Sismographe du présent,
l'artiste nous dévoile son âme hispanique, en ces endroits mystiques où la
recherche authentique, métaphysique, trouve tout son sens.
Loin des compromis et tout près des lois du cœur.
A cela, le démiurge trouve la parade. La liberté d'être au monde, avec
quelques pigments cravachant sur la toile. L'être humain, réconcilié avec
lui-même. Centré. C'est donc à une fête jouissive, et joyeuse, de l'être au monde, au cœur de la nature et du cosmos, que nous invitent donc, avec des moyens plastiques
différents, les deux artistes accueillis par la galerie Art et Vision. Ces deux regards croisés, de cultures proches, interpellent à travers deux œuvres plastiques originales.
Nous souhaitons également qu'elles enrichissent un nouveau public.
Pierre Pitter - Genève 2007
Museu de Cáceres Espanha
AMBIGÜIDADES
Sob o conceito ambigüidades, João Alexandre escolheu apresentar a sua obra nesta exposição. Como o próprio conceito indica, o autor faz questão de dirigir aos que aqui vierem um chamamento, faz questão de convidá-los não apenas para a participação descomprometida na festa da alegria que a sua obra promove, mas a nela permanecerem e se reconhecerem. Então, ele convida a todos a não se permitirem apenas uma contemplação rápida ou um olhar de revés. Na verdade, ele acena, chamando a atenção para as múltiplas possibilidades de interpretação da obra, como também acena para a crença no movimento do homem pelos múltiplos caminhos que a sua peregrinação poderá conduzir. Também evoca a certeza de que a arte, hoje, não representa, mas apresenta. Assim sendo, o contemplante ou o espectador é intimado a participar na obra, pois é desta participação que se completará o círculo que permitirá a própria vida a obra e, consequentemente, ao artista. É assim que se cria o vínculo entre o artista, a obra e o contemplante. Neste sentido, o contemplante não é apenas um convidado casual, descomprometido e alheio ao que uma obra apresenta; do mesmo modo, a obra não é um objeto mudo, apenas belo ou valioso. Então, somos convidados a ver cada peça em múltiplas perspectivas, detendo-nos em cada uma delas, reconhecendo um espaço que é o nosso, ou seja, de todos os que se deslocam e habitam o mundo.
Antes de nos determos na compreensão das peças aqui reunidas, é necessário não descurarmos a certeza de que o artista vê algo, que tudo o que aqui se apresenta é resultado da sua localização e observação do mundo, portanto, da relação do seu corpo com o mundo, do seu deslocamento, do seu saber ouvir, tocar, ver e sentir, coisas que todos nós, no nosso dia a dia fazemos. Portanto, não é nada transcendental o que aqui se apresenta. Assim, definimos um primeiro princípio norteador para nossa leitura da exposição: a arte é uma elaboração mental. Ainda que, após Duchamp, esta afirmação seja problemática, julgamos aceitável este princípio. Contudo, convém esclarecer que aqui não faremos a defesa do sujeito isolado, solipsista, preso no seu mundo especulativo, mas sustentaremos a necessidade de que, ainda que escolhendo os seus objetos para transformá-los em obras de arte, a escolha é de um indivíduo que tem a intenção de realizar alguma coisa, e ainda que o artista afaste de si a construção da obra, este afastamento não elimina a presença do indivíduo que manipula e conhece um determinado tipo de saber.
O artista vela e desvela o que para a maioria das pessoas permanece mudo, inaudito, invisível, inefável. Isto significa que ele tem uma função específica: presentificar a nossa relação com o mundo. Todavia, a sua tarefa não se restringe ao espaço do seu atelier ou ao espaço em branco da sua tela, da página do seu caderno, ou da tela do seu computador, ou de um amontoado de matéria inerte, ou dos sons espalhados pelo mundo. Ele somente se completa quando a obra acabada se permite ao contemplante. Neste sentido, são essenciais os espaços dos museus, das exposições, das revistas de arte, da mídia como elementos que dão a conhecer o trabalho artístico. É neste momento também que a obra ganha a sua autonomia. Por outras palavras, somente podemos falar de uma obra de arte quando ela sai do atelier e se apresenta ao público, quando este, por sua vez, se vê arrebatado por ela e se reconhece e ao seu mundo no momento em que a contempla.
Todavia, no mesmo instante em que a obra ganha autonomia, ela escapa das mãos do artista, e neste escapamento ela ganha significados impensáveis. Isto significa que há um espaço que não é domínio do artista e muito menos domínio de qualquer outro indivíduo. Neste momento, então, ela se mundaniza e se humaniza, e cria, a nossa ver, uma outra esfera ou outra significação. Desta vez, mais exótica, mais misteriosa e de mais difícil apreensão. Falamos, então, da esfera mística ou religiosa da obra. Este místico refere-se a uma região onde tanto o artista como o contemplante não conseguem penetrar ou esgotar. É o espaço do inefável, do que se quer emudecido, que, por outro lado, garante o espaço da ambigüidade ou da possibilidade de, sempre, novas leituras e novas compreensões se fazerem. O místico é o espaço do indizível, onde se esgota a racionalidade, a objetividade e a supremacia do homem. Entretanto, isto não pode desanimar ou descredibilizar os extremamente religiosos ou os incrédulos, pois a obra, como já dissemos, apresenta, e na sua apresentação ela situa-se no tempo e no espaço. Como ela é ambígüa no sentido em que permite um múltiplo reconhecimento, ela, além de não se esgotar, planta-se no seu presente, que, conforme a sua essência, é intemporal (não conferida pela matéria, mas pela faculdade de não esgotar o seu sentido) e universal, pois trata-se de uma construção humana que permite que cada humano se reconheça. Foi o místico que levou Sócrates a afirmar a ignorância do artista, ou seja, o distanciamento do pensamento racional, objetivo, do logos.
Poderíamos, por outro lado, evocar o empenho de autores como Freud, cujo pensamento ainda hoje é tido como um dos mais substanciais na compreensão da obra de arte, ou como Gil, na sua obra A imagem-nua e as pequenas percepções: estética e metafenomenologia, em anular o que chamamos elemento místico da obra de arte; o primeiro, através do inconsciente elimina qualquer elemento que não possa ser reconhecível pelo esforço da razão; o segundo, através da imagem-nua pretende que se faça a compreensão de um espaço mudo que se pode revelar, quando compreendido como feixe de forças. Do mesmo modo, poderíamos chamar a atenção para a definição de artista na compreensão de Duchamp: o artista é um homem como qualquer outro. A sua ocupação é fazer certas coisas, mas o homem de negócios também faz certas coisas…Todavia, o sagrado é uma dimensão humana, e, assim sendo, a cada época a própria sociedade distingue os seus profetas e, apesar da banalização da arte, o artista ainda não foi destituído da sua função de profeta ou de revelador de enigmas, ainda que ele seja apenas um fazedor de coisas.
Isto significa que o não-revelado, o que lhe confere o enorme manancial de significações, é dito ou sentido de múltiplas maneiras, revelando o seu paradoxo: permanecer de alguma forma mudo, para ser eloquente. É esta a sua vocação, e disto tem consciência o artista.
Com a afirmação de que a arte apresenta, vivemos uma contorção que marcou o universo artístico do século XX e se estende neste início de século XXI. É nesta contorção que se localiza a arte de João Alexandre, um artista que ingressou, em finais dos anos 70, na Faculdade de Belas Artes de São Paulo–Brasil e que divide o seu ser homem entre Brasil e Portugal, gerando-se, nele próprio, um espaço de ambigüidades. A circunstância que define o seu estatuto humano nem português nem brasileiro, estando, por isto, sempre acima das limitações que se podem gerar sob as designações patriotismo ou nacionalismo, e, portanto, acolhedor das diferenças, intolerante com a intolerância, aberto para a novidade presenteada diariamente pela vida, servem como leitmotiv para a sua obra. Esta contingência, que o coloca na ex-terioridade do mundo, promove uma visão do homem e do seu universo vasta e natural. Vasta, porque livre; natural, porque lhe dá a possibilidade de utilizar a si próprio para apresentar a sua obra. Daí sugerirmos que sua obra apresenta uma exterioridade/integrada/presente. A sua exterioridade faz com que ela o represente e o anule, gerando-se, ela própria, como autônoma.
Esta exposição registra dois momentos na obra de João Alexandre: primeiramente, o momento em que ele apresenta um novo desenvolvimento técnico, que traz um ganho incomensurável para a sua objetivação, e que se desenvolve e ganha força durante os anos seguintes; depois, o auge e a dissipação do que se consagrou com a técnica e, agora, busca novas expressões. Estamos, então, nas peças de 2004-06.
Em 2002, no catálogo do Grupo M.A.I. (Movimento Artístico Internacional), do qual fazem parte João Alexandre, Joaquín Balsa, André Welch e Hans-Dieter Zingraff, o artista apresenta a série Ensaios Líquidos. Nesta exposição, ele traz peças onde utiliza Técnica Mista/Tela e Acrílico/Tela, que sustentam, além da profusão de cores, uma técnica sedutora e enganadora. Aqui, as técnicas, as cores, o preenchimento do espaço atualizam, exaltam e esclarecem a idéia.
O artista, que ainda utilizava títulos para definir suas peças, descobre e nos revela, através da realização técnica, a dissipação ou a fragmentariedade. Com os novos recursos técnicos, que proporcionam uma ilusão de óptica (os falsos altos-relevos), sentimos que cada fragmento, ou dissipação ou átomo tem uma representtividade que, obrigatoriamente, solicita uma paragem, pois dá conta de cada um de nós, da nossa relação com o outro ou com o que nos serve e com o que servimos. Todavia, convém observar que dos olhos do artista não resulta um mundo que se apresenta como eqüidade. Ele vê, francamente, uma relação de seres diferentes, unidos, apenas, por uma herança biológica ou pela casualidade de não se relacionarem através de um mesmo código verbal, gestual ou de inconsciência. João Alexandre vê nas diferenças oferecidas pela sua percepção de homem situado no tempo e no espaço a cadeia homem-homem-mundo. Isto solicita, por sua vez, que não seja conferido um caráter naturalista a sua obra, mas o acréscimo de uma significação ética, pois a obra valora elementos e relações. É pela observação paciente e por um código de valor que o artista chegou à compreensão do Cosmo como dissipação ou fragmentação. Nas peças é observável um reclame para a uniformização, ainda que o artista tenha a consciência que isto é mais um apelo do que uma necessidade. Entretanto, não pleiteamos o sentido da utopia para o que pode ser visto, pois se a obra apresenta, ela não pode reivindicar o que está para além dela. A sua intemporalidade não significa que ela persegue um fim inalcansável mas já definido na cabeça de alguns homens. Por outro lado, esta obra não destina-se aos queixosos e pessimistas, ela desfaz-se numa posição otimista e relevante de pura visão do Cosmo. Longe está destas peças o queixume, o constrangimento ou a vergonha de ser homem, pois este não está fechado em si mesmo, é cósmico, e, como tal, abre-se para o desconhecido e desafiador. É por isto que as peças não permanecem estáticas diante dos nossos olhos, é por isso que as cores brincam diante de nós, é por isso que ela é harmoniosa. Ela pode ser um lugar concreto, um sonho, um abscôndito. Filho do abstracionismo, João Alexandre sabe brincar com as cores. Nas suas mãos elas ganham vida e quase se esquecem que estão em construção de algo, melhor dizendo, que elas são algo.
Observando o catálogo Cântico das Águas, vemos que o artista reúne algumas fases da sua pintura, com destaque para a que se inicia em 2004. A partir de então, ele recolhe objetos tirados da Natureza ou produzidos e descartados pelo homem, por exemplo, uma caixa de papelão, que desde a sua origem serve para abrigar, guardar e preservar algo que, na escala de consumo lhe é superior, ou o carvão natural, que por um capricho da Natureza não é um dos elementos mais valiosos, ou ainda uma casca de pau-preto, desprezada pelo homem, mas que pode acobertar-se de ouro no seu lugar natural. Tudo, como bem vê João Alexandre, resulta de valorações.
Nesta fase, o artista continua brincando com as cores, acrescentando-lhes elementos que as poderiam chocar ou as agredir, mas que, no entanto, são acolhidas e as realçam. De criança, de menino brincalhão e realizador de sonhos, transformando-se em adulto, ainda que fazendo da cor instrumento de alegria, pois o Cosmo é isto, ele não deixa de ver a venalidade do homem e, até mesmo, a sua amoralidade. Com a forma que se solidifica, a técnica que se apura o artesão ou fazedor de coisas se situa no tempo e no espaço. O artista agrupa-se aos que como ele tem o trabalho de revelar de uma maneira possível o que nem todos podem ver. No entanto, não esquece que tudo pode revelar no espaço da sua obra. Assim, uma pena de arara poderá transformar-se, no futuro, em uma peça. O artista tem a intuição de recolher o resíduo para enobrecê-lo em uma peça e exibi-la em um museu ou em uma galeria, revelando que a beleza está próxima a nós e que é simples. Um pintor da Natureza, talvez; um artesão do Cosmo, talvez; um fazedor do homem, talvez. No entanto, não entendamos que ao passar pelo entendimento, os materiais que o artista recolhe, a pedra-pomes que espalha pela tela, como as tintas, que tudo isto deixa de encarcerar contradições. O contrário. Ambigüidades mostra a infinitude de apresentações que se pode trazer e a infinidade de leituras que se pode proporcionar. Ambigüidades é trazida por um artista que vive na fronteira, na tênue fronteira do ser e do não-ser. Se em alguns esta exterioridade criou conflitos violentos, que se manifestam em muitos que não se conseguem adaptar à convivência com outros homens, felizmente neste artista que se embala entre Brasil/Portugal e, dai, sobre o mundo gerou belas e alegres obras. Cheias de beleza, harmoniosas e severas.
O artista utiliza-se da sua imaginação para nos trazer pedaços de nós mesmos, para nos mostrar a nossa fragmentariedade. Nós ressaltamos duas idéias: a primeira é a de microcosmo. Nas pequenas ilhas que se espalham pela peça e que chamamos fragmentação, dissipação ou atomização, iniciamos a leitura do mais próximo ou do mais simples para o mais complexo; a segunda é de macrocosmo. Esta é a grande síntese. Do todo para as partes. Principalmente nas peças maiores, esta leitura se impõe. Não significa que o tamanho da peça a imponha, mas que o artista permite que ela seja feita, pois somos desviados do microcosmo (as cores operacionalizam este desvio) para a idéia maior ou para o todo. Ainda que insistamos em ver as pequenas ilhas que sobressaem, imediatamente a visão reclama e o entendimento impõe que a leitura seja resultado de uma inversão. Habilidade do artista que brinca com as cores e com o querer do contemplante. João Alexandre, com certeza, rejubila, quando vê reunidas as peças de Ambigüidades, pois ele realizou o melhor possível seu métier. Esta deve ser a satisfação dos que criam. E também a dos que contemplam, porque só neste momento, o da contemplação que, de fato, estamos diante de uma obra de arte.
Neiza Teixeira
Doutora em Filosofia
Julho, 2006
Galeria Pedro Serrenho Lisboa
A VIDA DAS FORMAS
Na água nasceu a vida. Uniram-se e separaram-se as células necessárias ao nascimento de corpos e formas de vida. As leis do acaso, do caos e da vida criaram elementos orgânicos, musgos, corais e algas. Estes respiram. O ar e a água alastraram como uma onda de vida sem fim.
Nas obras de João Alexandre, a água tem a mesma função vital e existencial: criar vida e formas, separando e unindo os diversos corpos em presença. Derramada, segue o seu destino fugidio sem controlo e provocando reacções diversas nas outras matérias. O todo orgânico organiza-se caoticamente, determina zonas de densa profundidade colorida e outras parecidas com desertos onde ainda permanece o vestígio dos ancestrais oceanos, em que uma camada de sal secou a terra.
Pintar para João Alexandre é apresentar, tornar presente e não representar.
O pintor não se encontra perante a tela nua como um sujeito perante um objecto que tem que representar. Está aberto a ela como ela se abre a ele: num encontro ainda incerto. A superfície é um espaço potencial em espera de realização, em espera de acontecimentos.
A obra impõe-se, pesa com a sua presença e essa potência provém da forma. A forma é a unidade de potência e de presença que faz que uma obra esteja em poder de si própria e advenha segundo o seu estilo. A definição de uma forma passa por todas as suas vizinhanças. A sua espacialidade própria implica um quociente de abertura e um quociente de profundidade. Os dois estão ligados. E a sua interdependência exprime-se na dupla relação entre vazio e plenitude. O vazio obceca a plenitude: profundidade. A plenitude chama o vazio: abertura.
O que é a realidade? Apenas a sentimos na surpresa. Surpreende-nos na nossa própria existência que, súbita e inesperadamente, abre-se a ela mesma nesse instante. Surge com o acontecimento e afasta todos os signos. Um acontecimento - advir não se produz no mundo, mas abre o mundo. Todos os sistemas de referência até então operativos deixam de ser. O acontecimento é transformador e apenas o acolhemos se nos transformarmos também. Os verdadeiros acontecimentos são raros como rara é a existência. Apenas se abre abrindo-se ao acontecimento na surpresa da realidade.
A arte fixa a solenidade do nascimento de uma realidade e retém, na realidade captada, esse instante e assim da uma duração intemporal a esse instante solene.
Constança Metello Seixas
Setembro, 2002
Galeria Liberartis Porto
DIÁLOGO COM O VISÍVEL
" Falar do meu amigo João Alexandre não é fácil, porque não é fácil falar de um pintor filósofo, investigador e criador. A recente pintura de João Alexandre é de uma singular originalidade, um verdadeiro Diálogo com o Visível. Uma obra elaborada na esfera de uma filosofia palpável, que pelo facto de ser palpável não deixa de ser profunda. A despeito disso, a sua pintura parece adquirir um carácter quase imaterial, onde não se vislumbram gestos nem mãos. A obra vai surgindo como se o artista soprasse a camada de pó que a cobre, não se sabe se há séculos, há milénios ou há um tempo fora do tempo.
João Alexandre é daquelas pessoas que sabem que as utopias não existem para serem alcançadas, mas sim para que se caminhem na sua direcção. A sua pintura é uma luta constante contra a insinceridade, uma permanente insubmissão a todos os obstáculos que o possam impedir de se encontrar. Os que, como ele, tudo ousam fazer para não cederem a falácias histriónicas, sabem que esse é o caminho dos autênticos criadores.
A arte é um doloroso processo contínuo de aprendizagem e descoberta. Por isso, e sem beliscar minimamente a humildade, temos de reconhecer que o seu carácter eternamente marginal a impede de ir ao encontro das pessoas. São as pessoas que, quando sedentas de infinito e liberdade, aprendem a sentir a necessidade de a procurar. São as pessoas que devem ir ter com a arte e não o contrário.
Foi esse o percurso de João Alexandre, através de um corporizado caminho de amadurecimento, nunca se esquivando ao relativo para conseguir pôr os olhos no absoluto."
Dr. Adão Cruz
Maio, 2000
Superficies cremosas, orografías abstractas
La pintura no figurativa debe exhalar veracidad, y cimentarse en un andamiaje sólido, proceso sintético hasta reducir la materia a sus partículas más elementales. Los trabajos de João abrazan la mesura, en un mapa sinóptico a caballo entre la plenitud, la austeridad y el volumen lírico. No se percibe una abstracción geométrica stricto sensu, pero sí orden, equilibrio y mimada pulcritud en su epidermis.
Mientras pasea por los bulevares de la creación, João Alexandre se aviene con una técnica milenaria: la encáustica. A diferencia del óleo, en el que el aglutinante de los pigmentos suele ser el aceite de linaza o la esencia de trementina, en la encáustica se aplica cera de abejas refinada, proporcionando efectos de apreciable intensidad. Resultan así obras táctiles, de plasticidad orográfica y destacadamente contemplativas, detalle heredado de la color field painting de posguerra. Sus contornos netos, bruñidos, por el contrario, la vinculan con la corriente hard edge. Conjuntamente, el collage y el informalismo proporcionan matices a su obra, reposando sobre madera, papel o papiro.
Sus trazos son poderosamente vigorosos, de profundidad abismal, materia sin materia, caligrafía desnuda y envolvente como la música de las esferas. ¿No aspira en definitiva el arte abstracto a convertirse en reino soberano, independiente? La pintura es un templo, y cada surco que Alexandre excava una invocación al color y a la forma, embebidos de sentimiento. Superficies impermeables, negros tupidos, magentas carnales, aguamarinas escanciados, y blancos delicados como seda de Kashgar, galantean con la retina. Encáustica, importada del griego, significa literalmente grabar a fuego. Bien lo sabían en la inmemorial Solunto, y asimismo João, impecable legatario de técnicas perennes.
Manuel Márquez Crespo
Historiador del Arte
Centro das Artes do Espectáculo Sever do Vouga
Modus operandi
Como eu já disse num outro texto sobre João Alexandre, falar dele não é fácil, porque não é fácil falar de um pintor que é, ao mesmo tempo, amigo, filósofo e criador.
O João resolveu dar a esta sua exposição o título Modus Operandi, que é uma expressão latina utilizada para significar um modo de agir ou de operar, mantendo sempre, de uma maneira geral, procedimentos idênticos.
Na verdade, objectivo e positivo como é o João, não poderia escolher melhor título. É que toda a sua obra, desde que o conheço, mais do que em qualquer outro pintor, revela um permanente modus operandi do qual ele não mostra vontade de sair, a despeito de uma imaginação dinâmica e de uma inteligência sempre activas.
Isto não impede que a sua pintura seja de uma singular originalidade, elaborada numa espécie de redundância conceptual, materializada na esfera de uma filosofia palpável, que, pelo facto de ser palpável, não deixa de ser profunda.
Materializada dentro dessa filosofia palpável, a sua pintura parece adquirir, filosoficamente, um carácter quase imaterial, onde não se vislumbram gestos nem mãos. Há uma expressão que já utilizei, mas que me parece tão adequada à pintura do João Alexandre, que não resisto a relembrá-la: a sua pintura vai aparecendo como se o artista soprasse a camada de pó que a cobre, não se sabe se há séculos, há milénios ou há um tempo fora do tempo. Uma espécie de alma para lá da translucidez da estrutura corporal da tela.
O João sabe como ninguém que o sentimento artístico enriquece o sentido da humanização, ajuda o processo de reflexão, ilumina as emoções e os sentimentos, cria uma poderosa afinidade com a consciência, gera uma grande necessidade de identificação com a verdade, desenvolve o sentido da estética e da beleza. E o João também sabe que o sentimento artístico é indispensável para a compreensão da maravilhosa complexidade dos seres e do mundo. O sentimento artístico, a inteligência e a vontade contribuem para que o prazer estético decorra do triunfo sobre o humano, criando sentimentos novos que projectam o homem na ordem universal.
Por isso, a pintura de João Alexandre é um testemunho de que esse mesmo sentimento artístico nasce de um doloroso processo de aprendizagem e descoberta, através de um longo caminho de humildade e de verdade. E não tenho dúvidas de que João Alexandre é um artista feito de curiosidade e uma pessoa cuja grandeza se mede pela grandeza da sua humildade. Não é de somenos importância que o João, senhor de uma insaciável sede de cultura geral, social e científica, e de uma profunda sabedoria dentro da área da pintura, seja um pintor sem presunções e sem vaidades, um pintor profundamente sério dentro da fragilidade e da eterna marginalidade da arte.
Claro que cabe a cada ser humano a necessidade de aprender a sede de infinito e liberdade. Parecendo, falsamente, um conceito elitista, não pode ser a arte a descer ao homem, mas é, certamente, o homem que tem de subir à arte através de um processo cultural mais ou menos árduo e longo. Para tal ele tem de aprender que a arte não é um conjunto de partes mas um todo emaranhado de interacções profundas entre o Homem e a vida, entre o Homem e a estética, entre o Homem e o Universo. Daí a total ausência de ambiguidade na pintura do João. Ele sabe que a obra de arte não deve pretender mostrar nada em concreto, e que por mais figurativa que seja a obra de um artista, ela só é arte quando a sua profunda, intrínseca e mágica natureza lhe confere um delicado papel de estímulo que pode arrancar o homem à sua hibernação e levar a pessoa que a contempla a revelar-se a si própria e a conhecer-se melhor.
Decorrente do que disse atrás, creio que João Alexandre, na sua pureza e seriedade artísticas, e de uma forma provavelmente não totalmente consciente, se tenha deixado imbuir de um certo esoterismo, enigmático e impenetrável, com o qual foi esmerilando pacientemente essa pedra informe que ganha vida e sonho nas suas telas misteriosamente abstractas. Talvez advenha daí um certo medo, saudável medo, de trocar o modus operandi que, segundo julgo, ele pensa que ainda o não catapultou ao entendimento do todo, às altas esferas da nossa utopia em que tudo existe mas nada existe isolado.
Neste longo caminho do amadurecimento, tapetado de cardos e abrolhos, o João é das poucas pessoas que conheço, que, como homem e artista, tudo tem feito para não deixar a vida parar no tempo, nunca se esquivando ao relativo para pôr bem alto os olhos no absoluto.
Dr. Adão Cruz
Maio 2010
Galerie Art et Vision Genève Suisse
JOÃO ALEXANDRE - JOAQUÍN BALSA
PORTUGAL – ESPAGNE
REGARDS CROISÉS
Portugal: A la langue chantante, chuintante, comme les vagues océanes.
Espagne : A la langue âpre et rocailleuse comme les contreforts de Castille.
Les lieux inspirateurs des verbes et des dieux. Les lieux inspirateurs des artistes.
João Alexandre et ses cantiques des eaux.
Jaoquín Balsa : la morsure métallique sur l'étoffe des pigments.
Deux pays, deux œuvres emblématiques, deux regards croisés de deux artistes
contemporains.
Nés tous les deux au début des années soixante, a mi-chemin de leur parcours
créatif, ils ont passé leur enfance dans deux pays encore sous le joug d'un régime musclé. L'avènement des démocraties parlementaires a permis à ceux-.ci de
s'épanouir dans leurs deux pays respectifs, encouragés par de nouvelles
institutions. En résulte une saveur, une authenticité. Il y a donc des
artistes fidèles à la fonction sacrée et métaphysique de l'Art, sa
vocation première. Le reflet authentique du présent pour les archéologues du
futur. Mais aussi la sentinelle, l'éclaireuse inspirée de notre destin commun.
Deux artistes d'aujourd'hui, la quarantaine entamée, dans la force et la
jeunesse de leur art. Deux regards croisés, deux témoins privilégiés de
deux pays proches de la Suisse, plus proches encore de Genève, par les
nombreux membres de leurs deux communautés qui y ont fait souche.
João Alexandre est né à Sever de Vouga au Portugal, en 1960, mais c'est à
Sao. Paulo, au Brésil, qu'il acquière son métier, à la faculté des Beaux.-Arts.
Le grand large, les grands espaces, dès sa jeunesse. Enfant de l'océan,
comme ceux de son peuple, Joao est également un enfant de l'abstraction,
mais au-delà du paysagisme, au-.delà du lyrisme. Au cœur du cosmos, au cœur
de la création. A la source des eaux, créatrices de formes. D'où les
tentatives de certaines de ses œuvres. Essais liquides, en technique mixte sur
toile. Ou encore le cantique des eaux, le titre d'une autre exposition.
Emergent des océans cosmiques, où le liquide se mélange au ciel, aux
constellations. Chaos originel aux prises avec l'imaginaire. Magma
primordial, nostalgique du grand Tout. Ordre et désordre, ombres et lumières.
Vertiges des profondeurs, abysses inconnus. L'artiste avance, armé de
quelques pigments, de quelques élixirs alchimiques. Il fixe un moment
imaginaire et cosmique pour longtemps. Magie. Ors et noirceurs mêlées,
chaudrons brûlants de rouges éruptions. Plus loin,
la froideur astrale. Emerveillement du monde. Diversité, Beauté donnée.
Microcosme, macrocosme et la tentative de synthèse, démiurgique. L'œuvre
est née, de la réalité captée, intemporelle, solennelle.
Préoccupations plus conceptuelles dans ses dernières productions. Le titre :
ambiguïtés.
L'artiste y expérimente de nouveaux matériaux, le carbone naturel au noir
d'encre, les empâtements de ciment fusionné à l'acrylique. Il continue
sa quête, l'art comme élaboration mentale, indicible, mystique. Dans cette
construction humaine, chacun peut s'y reconnaître selon son propre vécu
culturel. Avec toutes les ambiguïtés, les interprétations multiples. Les
formes se solidifient, les techniques s'épurent. Nulle présence humaine, ou
technologique dans les œuvres de João Alexandre. L'artiste est au cœur de
la nature, au cœur de lui-même aussi, pate humaine fusionnée au cosmos et en
quête de sens. En résistance contre les mondialisations technologiques,
répétitrices du même, à l'infini, jusqu'à la nausée.
Joaquín Balsa est né à Ourense, en Galice, Espagne, en 1960. Liberté du
geste, originalité de la pensée, c'est le type même de l'artiste en
recherche permanente. Voyage au pays de la mémoire, découverte de soi, de ses
pulsions inconscientes, de ses abîmes, mais aussi de ses joies. Hymne à la
création, à la crête du mysticisme. Joaquín interpelle, se cherche,
expérimente de nouvelles techniques, de nouveaux arts de vivre. Avec les
autres aussi, puisqu'il réalise des performances publiques dans lesquelles
il intègre divers acteurs : enfants, fonctionnaires, travailleurs sociaux. De ses gestes libres naissent des harmonies frémissantes, des formes puisées dans un vieux fond secret. Les souvenirs de vies antérieures, une archéologie privilégiée qui fait sens.
Paysages cosmiques, effervescences, et l'être se dévoile, signe des autoportraits
somptueux. Quand il zèbre ses peintures sur chape galvanisée à la scie électrique, il
expérimente la vitesse, la morsure sur la soierie des couleurs.
Des harmonies aléatoires se dévoilent alors, découvrant les mondes
intérieurs, visions, signes, symboles, jeux. L'essentiel : être à l'écoute de soi, de ses pulsions, de ses sentiments. Emergence de formes, de rythmes, de couleurs.
Emerveillement du monde dévoilé comme devant l'amour.
Tableau de soi, à l'infini, révélateur. Des peurs, du chaos à venir, mais aussi des harmonies toujours possibles, lorsque l'humain chuchote, les chemins de traverse, les
chemins de liberté, les retrouvailles, la fusion amoureuse.
L'art de Joaquín Balsa s'exerce également en trois dimensions. Sculptures
verticales, totems colorés, disent son monde. Choc du bois et du métal.
Tendre monde intime contre agression du monde. Sismographe du présent,
l'artiste nous dévoile son âme hispanique, en ces endroits mystiques où la
recherche authentique, métaphysique, trouve tout son sens.
Loin des compromis et tout près des lois du cœur.
A cela, le démiurge trouve la parade. La liberté d'être au monde, avec
quelques pigments cravachant sur la toile. L'être humain, réconcilié avec
lui-même. Centré. C'est donc à une fête jouissive, et joyeuse, de l'être au monde, au cœur de la nature et du cosmos, que nous invitent donc, avec des moyens plastiques
différents, les deux artistes accueillis par la galerie Art et Vision. Ces deux regards croisés, de cultures proches, interpellent à travers deux œuvres plastiques originales.
Nous souhaitons également qu'elles enrichissent un nouveau public.
Pierre Pitter - Genève 2007
Museu de Cáceres Espanha
AMBIGÜIDADES
Sob o conceito ambigüidades, João Alexandre escolheu apresentar a sua obra nesta exposição. Como o próprio conceito indica, o autor faz questão de dirigir aos que aqui vierem um chamamento, faz questão de convidá-los não apenas para a participação descomprometida na festa da alegria que a sua obra promove, mas a nela permanecerem e se reconhecerem. Então, ele convida a todos a não se permitirem apenas uma contemplação rápida ou um olhar de revés. Na verdade, ele acena, chamando a atenção para as múltiplas possibilidades de interpretação da obra, como também acena para a crença no movimento do homem pelos múltiplos caminhos que a sua peregrinação poderá conduzir. Também evoca a certeza de que a arte, hoje, não representa, mas apresenta. Assim sendo, o contemplante ou o espectador é intimado a participar na obra, pois é desta participação que se completará o círculo que permitirá a própria vida a obra e, consequentemente, ao artista. É assim que se cria o vínculo entre o artista, a obra e o contemplante. Neste sentido, o contemplante não é apenas um convidado casual, descomprometido e alheio ao que uma obra apresenta; do mesmo modo, a obra não é um objeto mudo, apenas belo ou valioso. Então, somos convidados a ver cada peça em múltiplas perspectivas, detendo-nos em cada uma delas, reconhecendo um espaço que é o nosso, ou seja, de todos os que se deslocam e habitam o mundo.
Antes de nos determos na compreensão das peças aqui reunidas, é necessário não descurarmos a certeza de que o artista vê algo, que tudo o que aqui se apresenta é resultado da sua localização e observação do mundo, portanto, da relação do seu corpo com o mundo, do seu deslocamento, do seu saber ouvir, tocar, ver e sentir, coisas que todos nós, no nosso dia a dia fazemos. Portanto, não é nada transcendental o que aqui se apresenta. Assim, definimos um primeiro princípio norteador para nossa leitura da exposição: a arte é uma elaboração mental. Ainda que, após Duchamp, esta afirmação seja problemática, julgamos aceitável este princípio. Contudo, convém esclarecer que aqui não faremos a defesa do sujeito isolado, solipsista, preso no seu mundo especulativo, mas sustentaremos a necessidade de que, ainda que escolhendo os seus objetos para transformá-los em obras de arte, a escolha é de um indivíduo que tem a intenção de realizar alguma coisa, e ainda que o artista afaste de si a construção da obra, este afastamento não elimina a presença do indivíduo que manipula e conhece um determinado tipo de saber.
O artista vela e desvela o que para a maioria das pessoas permanece mudo, inaudito, invisível, inefável. Isto significa que ele tem uma função específica: presentificar a nossa relação com o mundo. Todavia, a sua tarefa não se restringe ao espaço do seu atelier ou ao espaço em branco da sua tela, da página do seu caderno, ou da tela do seu computador, ou de um amontoado de matéria inerte, ou dos sons espalhados pelo mundo. Ele somente se completa quando a obra acabada se permite ao contemplante. Neste sentido, são essenciais os espaços dos museus, das exposições, das revistas de arte, da mídia como elementos que dão a conhecer o trabalho artístico. É neste momento também que a obra ganha a sua autonomia. Por outras palavras, somente podemos falar de uma obra de arte quando ela sai do atelier e se apresenta ao público, quando este, por sua vez, se vê arrebatado por ela e se reconhece e ao seu mundo no momento em que a contempla.
Todavia, no mesmo instante em que a obra ganha autonomia, ela escapa das mãos do artista, e neste escapamento ela ganha significados impensáveis. Isto significa que há um espaço que não é domínio do artista e muito menos domínio de qualquer outro indivíduo. Neste momento, então, ela se mundaniza e se humaniza, e cria, a nossa ver, uma outra esfera ou outra significação. Desta vez, mais exótica, mais misteriosa e de mais difícil apreensão. Falamos, então, da esfera mística ou religiosa da obra. Este místico refere-se a uma região onde tanto o artista como o contemplante não conseguem penetrar ou esgotar. É o espaço do inefável, do que se quer emudecido, que, por outro lado, garante o espaço da ambigüidade ou da possibilidade de, sempre, novas leituras e novas compreensões se fazerem. O místico é o espaço do indizível, onde se esgota a racionalidade, a objetividade e a supremacia do homem. Entretanto, isto não pode desanimar ou descredibilizar os extremamente religiosos ou os incrédulos, pois a obra, como já dissemos, apresenta, e na sua apresentação ela situa-se no tempo e no espaço. Como ela é ambígüa no sentido em que permite um múltiplo reconhecimento, ela, além de não se esgotar, planta-se no seu presente, que, conforme a sua essência, é intemporal (não conferida pela matéria, mas pela faculdade de não esgotar o seu sentido) e universal, pois trata-se de uma construção humana que permite que cada humano se reconheça. Foi o místico que levou Sócrates a afirmar a ignorância do artista, ou seja, o distanciamento do pensamento racional, objetivo, do logos.
Poderíamos, por outro lado, evocar o empenho de autores como Freud, cujo pensamento ainda hoje é tido como um dos mais substanciais na compreensão da obra de arte, ou como Gil, na sua obra A imagem-nua e as pequenas percepções: estética e metafenomenologia, em anular o que chamamos elemento místico da obra de arte; o primeiro, através do inconsciente elimina qualquer elemento que não possa ser reconhecível pelo esforço da razão; o segundo, através da imagem-nua pretende que se faça a compreensão de um espaço mudo que se pode revelar, quando compreendido como feixe de forças. Do mesmo modo, poderíamos chamar a atenção para a definição de artista na compreensão de Duchamp: o artista é um homem como qualquer outro. A sua ocupação é fazer certas coisas, mas o homem de negócios também faz certas coisas…Todavia, o sagrado é uma dimensão humana, e, assim sendo, a cada época a própria sociedade distingue os seus profetas e, apesar da banalização da arte, o artista ainda não foi destituído da sua função de profeta ou de revelador de enigmas, ainda que ele seja apenas um fazedor de coisas.
Isto significa que o não-revelado, o que lhe confere o enorme manancial de significações, é dito ou sentido de múltiplas maneiras, revelando o seu paradoxo: permanecer de alguma forma mudo, para ser eloquente. É esta a sua vocação, e disto tem consciência o artista.
Com a afirmação de que a arte apresenta, vivemos uma contorção que marcou o universo artístico do século XX e se estende neste início de século XXI. É nesta contorção que se localiza a arte de João Alexandre, um artista que ingressou, em finais dos anos 70, na Faculdade de Belas Artes de São Paulo–Brasil e que divide o seu ser homem entre Brasil e Portugal, gerando-se, nele próprio, um espaço de ambigüidades. A circunstância que define o seu estatuto humano nem português nem brasileiro, estando, por isto, sempre acima das limitações que se podem gerar sob as designações patriotismo ou nacionalismo, e, portanto, acolhedor das diferenças, intolerante com a intolerância, aberto para a novidade presenteada diariamente pela vida, servem como leitmotiv para a sua obra. Esta contingência, que o coloca na ex-terioridade do mundo, promove uma visão do homem e do seu universo vasta e natural. Vasta, porque livre; natural, porque lhe dá a possibilidade de utilizar a si próprio para apresentar a sua obra. Daí sugerirmos que sua obra apresenta uma exterioridade/integrada/presente. A sua exterioridade faz com que ela o represente e o anule, gerando-se, ela própria, como autônoma.
Esta exposição registra dois momentos na obra de João Alexandre: primeiramente, o momento em que ele apresenta um novo desenvolvimento técnico, que traz um ganho incomensurável para a sua objetivação, e que se desenvolve e ganha força durante os anos seguintes; depois, o auge e a dissipação do que se consagrou com a técnica e, agora, busca novas expressões. Estamos, então, nas peças de 2004-06.
Em 2002, no catálogo do Grupo M.A.I. (Movimento Artístico Internacional), do qual fazem parte João Alexandre, Joaquín Balsa, André Welch e Hans-Dieter Zingraff, o artista apresenta a série Ensaios Líquidos. Nesta exposição, ele traz peças onde utiliza Técnica Mista/Tela e Acrílico/Tela, que sustentam, além da profusão de cores, uma técnica sedutora e enganadora. Aqui, as técnicas, as cores, o preenchimento do espaço atualizam, exaltam e esclarecem a idéia.
O artista, que ainda utilizava títulos para definir suas peças, descobre e nos revela, através da realização técnica, a dissipação ou a fragmentariedade. Com os novos recursos técnicos, que proporcionam uma ilusão de óptica (os falsos altos-relevos), sentimos que cada fragmento, ou dissipação ou átomo tem uma representtividade que, obrigatoriamente, solicita uma paragem, pois dá conta de cada um de nós, da nossa relação com o outro ou com o que nos serve e com o que servimos. Todavia, convém observar que dos olhos do artista não resulta um mundo que se apresenta como eqüidade. Ele vê, francamente, uma relação de seres diferentes, unidos, apenas, por uma herança biológica ou pela casualidade de não se relacionarem através de um mesmo código verbal, gestual ou de inconsciência. João Alexandre vê nas diferenças oferecidas pela sua percepção de homem situado no tempo e no espaço a cadeia homem-homem-mundo. Isto solicita, por sua vez, que não seja conferido um caráter naturalista a sua obra, mas o acréscimo de uma significação ética, pois a obra valora elementos e relações. É pela observação paciente e por um código de valor que o artista chegou à compreensão do Cosmo como dissipação ou fragmentação. Nas peças é observável um reclame para a uniformização, ainda que o artista tenha a consciência que isto é mais um apelo do que uma necessidade. Entretanto, não pleiteamos o sentido da utopia para o que pode ser visto, pois se a obra apresenta, ela não pode reivindicar o que está para além dela. A sua intemporalidade não significa que ela persegue um fim inalcansável mas já definido na cabeça de alguns homens. Por outro lado, esta obra não destina-se aos queixosos e pessimistas, ela desfaz-se numa posição otimista e relevante de pura visão do Cosmo. Longe está destas peças o queixume, o constrangimento ou a vergonha de ser homem, pois este não está fechado em si mesmo, é cósmico, e, como tal, abre-se para o desconhecido e desafiador. É por isto que as peças não permanecem estáticas diante dos nossos olhos, é por isso que as cores brincam diante de nós, é por isso que ela é harmoniosa. Ela pode ser um lugar concreto, um sonho, um abscôndito. Filho do abstracionismo, João Alexandre sabe brincar com as cores. Nas suas mãos elas ganham vida e quase se esquecem que estão em construção de algo, melhor dizendo, que elas são algo.
Observando o catálogo Cântico das Águas, vemos que o artista reúne algumas fases da sua pintura, com destaque para a que se inicia em 2004. A partir de então, ele recolhe objetos tirados da Natureza ou produzidos e descartados pelo homem, por exemplo, uma caixa de papelão, que desde a sua origem serve para abrigar, guardar e preservar algo que, na escala de consumo lhe é superior, ou o carvão natural, que por um capricho da Natureza não é um dos elementos mais valiosos, ou ainda uma casca de pau-preto, desprezada pelo homem, mas que pode acobertar-se de ouro no seu lugar natural. Tudo, como bem vê João Alexandre, resulta de valorações.
Nesta fase, o artista continua brincando com as cores, acrescentando-lhes elementos que as poderiam chocar ou as agredir, mas que, no entanto, são acolhidas e as realçam. De criança, de menino brincalhão e realizador de sonhos, transformando-se em adulto, ainda que fazendo da cor instrumento de alegria, pois o Cosmo é isto, ele não deixa de ver a venalidade do homem e, até mesmo, a sua amoralidade. Com a forma que se solidifica, a técnica que se apura o artesão ou fazedor de coisas se situa no tempo e no espaço. O artista agrupa-se aos que como ele tem o trabalho de revelar de uma maneira possível o que nem todos podem ver. No entanto, não esquece que tudo pode revelar no espaço da sua obra. Assim, uma pena de arara poderá transformar-se, no futuro, em uma peça. O artista tem a intuição de recolher o resíduo para enobrecê-lo em uma peça e exibi-la em um museu ou em uma galeria, revelando que a beleza está próxima a nós e que é simples. Um pintor da Natureza, talvez; um artesão do Cosmo, talvez; um fazedor do homem, talvez. No entanto, não entendamos que ao passar pelo entendimento, os materiais que o artista recolhe, a pedra-pomes que espalha pela tela, como as tintas, que tudo isto deixa de encarcerar contradições. O contrário. Ambigüidades mostra a infinitude de apresentações que se pode trazer e a infinidade de leituras que se pode proporcionar. Ambigüidades é trazida por um artista que vive na fronteira, na tênue fronteira do ser e do não-ser. Se em alguns esta exterioridade criou conflitos violentos, que se manifestam em muitos que não se conseguem adaptar à convivência com outros homens, felizmente neste artista que se embala entre Brasil/Portugal e, dai, sobre o mundo gerou belas e alegres obras. Cheias de beleza, harmoniosas e severas.
O artista utiliza-se da sua imaginação para nos trazer pedaços de nós mesmos, para nos mostrar a nossa fragmentariedade. Nós ressaltamos duas idéias: a primeira é a de microcosmo. Nas pequenas ilhas que se espalham pela peça e que chamamos fragmentação, dissipação ou atomização, iniciamos a leitura do mais próximo ou do mais simples para o mais complexo; a segunda é de macrocosmo. Esta é a grande síntese. Do todo para as partes. Principalmente nas peças maiores, esta leitura se impõe. Não significa que o tamanho da peça a imponha, mas que o artista permite que ela seja feita, pois somos desviados do microcosmo (as cores operacionalizam este desvio) para a idéia maior ou para o todo. Ainda que insistamos em ver as pequenas ilhas que sobressaem, imediatamente a visão reclama e o entendimento impõe que a leitura seja resultado de uma inversão. Habilidade do artista que brinca com as cores e com o querer do contemplante. João Alexandre, com certeza, rejubila, quando vê reunidas as peças de Ambigüidades, pois ele realizou o melhor possível seu métier. Esta deve ser a satisfação dos que criam. E também a dos que contemplam, porque só neste momento, o da contemplação que, de fato, estamos diante de uma obra de arte.
Neiza Teixeira
Doutora em Filosofia
Julho, 2006
Galeria Pedro Serrenho Lisboa
A VIDA DAS FORMAS
Na água nasceu a vida. Uniram-se e separaram-se as células necessárias ao nascimento de corpos e formas de vida. As leis do acaso, do caos e da vida criaram elementos orgânicos, musgos, corais e algas. Estes respiram. O ar e a água alastraram como uma onda de vida sem fim.
Nas obras de João Alexandre, a água tem a mesma função vital e existencial: criar vida e formas, separando e unindo os diversos corpos em presença. Derramada, segue o seu destino fugidio sem controlo e provocando reacções diversas nas outras matérias. O todo orgânico organiza-se caoticamente, determina zonas de densa profundidade colorida e outras parecidas com desertos onde ainda permanece o vestígio dos ancestrais oceanos, em que uma camada de sal secou a terra.
Pintar para João Alexandre é apresentar, tornar presente e não representar.
O pintor não se encontra perante a tela nua como um sujeito perante um objecto que tem que representar. Está aberto a ela como ela se abre a ele: num encontro ainda incerto. A superfície é um espaço potencial em espera de realização, em espera de acontecimentos.
A obra impõe-se, pesa com a sua presença e essa potência provém da forma. A forma é a unidade de potência e de presença que faz que uma obra esteja em poder de si própria e advenha segundo o seu estilo. A definição de uma forma passa por todas as suas vizinhanças. A sua espacialidade própria implica um quociente de abertura e um quociente de profundidade. Os dois estão ligados. E a sua interdependência exprime-se na dupla relação entre vazio e plenitude. O vazio obceca a plenitude: profundidade. A plenitude chama o vazio: abertura.
O que é a realidade? Apenas a sentimos na surpresa. Surpreende-nos na nossa própria existência que, súbita e inesperadamente, abre-se a ela mesma nesse instante. Surge com o acontecimento e afasta todos os signos. Um acontecimento - advir não se produz no mundo, mas abre o mundo. Todos os sistemas de referência até então operativos deixam de ser. O acontecimento é transformador e apenas o acolhemos se nos transformarmos também. Os verdadeiros acontecimentos são raros como rara é a existência. Apenas se abre abrindo-se ao acontecimento na surpresa da realidade.
A arte fixa a solenidade do nascimento de uma realidade e retém, na realidade captada, esse instante e assim da uma duração intemporal a esse instante solene.
Constança Metello Seixas
Setembro, 2002
Galeria Liberartis Porto
DIÁLOGO COM O VISÍVEL
" Falar do meu amigo João Alexandre não é fácil, porque não é fácil falar de um pintor filósofo, investigador e criador. A recente pintura de João Alexandre é de uma singular originalidade, um verdadeiro Diálogo com o Visível. Uma obra elaborada na esfera de uma filosofia palpável, que pelo facto de ser palpável não deixa de ser profunda. A despeito disso, a sua pintura parece adquirir um carácter quase imaterial, onde não se vislumbram gestos nem mãos. A obra vai surgindo como se o artista soprasse a camada de pó que a cobre, não se sabe se há séculos, há milénios ou há um tempo fora do tempo.
João Alexandre é daquelas pessoas que sabem que as utopias não existem para serem alcançadas, mas sim para que se caminhem na sua direcção. A sua pintura é uma luta constante contra a insinceridade, uma permanente insubmissão a todos os obstáculos que o possam impedir de se encontrar. Os que, como ele, tudo ousam fazer para não cederem a falácias histriónicas, sabem que esse é o caminho dos autênticos criadores.
A arte é um doloroso processo contínuo de aprendizagem e descoberta. Por isso, e sem beliscar minimamente a humildade, temos de reconhecer que o seu carácter eternamente marginal a impede de ir ao encontro das pessoas. São as pessoas que, quando sedentas de infinito e liberdade, aprendem a sentir a necessidade de a procurar. São as pessoas que devem ir ter com a arte e não o contrário.
Foi esse o percurso de João Alexandre, através de um corporizado caminho de amadurecimento, nunca se esquivando ao relativo para conseguir pôr os olhos no absoluto."
Dr. Adão Cruz
Maio, 2000